Esgarça o pincel, aperta a tinta, lampeja a parede com riscos quasi-infantis. DaVinci lhe ensina os passos para pintar sua incomparável musa, Caravaggio lhe ajuda no chiaroscuro de sua difícil mensagem e Michelangelo guia sua mão para a conclusão de seu magnum opus.
Aperta os olhos, se afasta. Se aproxima, entre os tiques e as risadas. Olha de perto. Gargalha entre os soluços e lágrimas. Não está bom. Não ainda, não. Não é isso. Ri, contorce de dor.
Lhe falta os momentos do casamento, dos filhos, da alegria esfuziante. Onde está o seu último achado de semana passada? Revira sua bagunça. Entre os lençóis floridos e pedaços de uma madeira envernizada, acha a caixinha preta, sem muitos detalhes, mas com cheiro de perfume barato. Aplaude, dança uma ciranda em volta de uma fogueira imaginária. Com o braço joga o que está em cima da conturbada mesa, quebrando vidros e estalando metais. Trêmulo, abre seu tesouro: entre mechas de cabelos longos, puxa um pequeno batom. Fixa seu olhar, grita. Roda com cuidado, expõe o carmesim, da mesma cor do sangue sob os seus pés.
Risca de ponta a ponta. Dois pontos de fuga. É isso. Está pronto. Urra, vocifera, abraça a barriga vazia, está satisfeito do vazio que lhe fez, pronto para ser inundado do amor.
O velho telefone toca na hora de seu êxtase. Se recompõe, volta a banalidade, puxa o gancho, põe no ouvido. São novamente Eles. Dizem que dessa vez passou dos limites, estão indo busca-lo com aquele papel que lhe tira do seu amor. Ele abre o maior sorriso, aperta os olhos. Pronuncia em profundo prazer e agonia:
"Sinto muito, eu não moro mais aqui."
Gargalha, se deita. Se encolhe. Dorme. Volta para os braços dela.
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