segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

ἀποκάλυψις

 Um anjo me visitou em meus sonhos ontem. Eu ouvia o silêncio entre suas palavras, e ele falava muito mais do que se dizia. 

Não era capaz de entender sua figura, apenas o que minha mente me permitia compreender. O que vi era capaz de deixar o mais cético um fervoroso fiel, e o mais são em profunda loucura. O que deveriam ser seus pés brilhavam como cem sóis, e sua boca emanava fogo. Seu corpo não tinha fim e também não tinha começo, e esferas rodavam em seu entorno, com palavras inteligíveis, mas que descreviam o fim, o começo e tudo que no meio havia. Suas asas tocavam céus, terra, os cosmos e tudo que poderia existir dentro do Universo. 

Suas palavras me cortavam como lâminas afiadas. A cada sentença, uma revelação que nem mil livros seriam capazes de conter, as verdades da realidade me foram ditas, mesmo que eu não pudesse compreender. De tudo que ele disse, eu só era capaz de fazer sentido daquilo que mais me doía:

"Quem é você? Qual a sua relevância para aquilo que o Único criou? Se és apenas capaz de ver o que sua vida lhe permite, qual é a verdade absoluta? O que veio antes de você e o que virá depois? Quem é capaz de fazer frente a inexorável força do desconhecido?"


E como ele veio, se foi, sem deixar rastros, exceto minha mente confusa e desesperada por razão.


Quem tem ouvidos, ouça.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Great Unknown

 

Diario de exploração, Codigo XY-32

Registro de campo, data   ⋲ ┯┷ do éon unificado

Pousamos em uma clareira de dimensões aceitáveis no referido planeta, com sinais de mudanças por ação externa intencional. Entretanto não há sinal de formas vivas orgânicas sencientes no local e nosso scanner declara completa ausência de vida orgânica com consciência organizacional acima de delta-épsilon. Sendo assim, o referido local deve ter sido feito por uma espécie agora completamente extinta. 

Avançamos com cautela no local, e não há muito o que se notar de relevante, até se adentrar em uma construção, rústica, de pátio geométrico, o que demonstra que essa civilização tinha noções matemáticas, inatas ou observativas. Dentro do citado pátio, em posição central, encontra-se, revestido de vida orgânica vegetal, o que aparenta ser um monolito. Nos aproximamos e olhamos com cautela, evitando de gerar danos. 

O material é claramente mineral, mas parece ter uma estrutura interna, revelada por raios x, de ligas metálicas que dão suporte aos apêndices, o que prova que sabiam de metalurgia. A imagem formada parece ser uma representação física da espécie que construiu este local. Nossos especialistas ficaram chocados com a biologia, que consiste de 4 apêndices, no qual o espécime se apoiava apenas com dois e manipulava objetos com outros dois, apesar da imagem não estar em posição de uso, aparentando estar em uma posição de descanso. 

 Pela disposição, a imagem sugere que a unidade processadora de informações ficava na parte mais distante do chão. Existem uma série de feixes musculares nesta parte que nossos dados indicam a possibilidade do uso para expressões e comunicação. A escultura tem feições que nossos especialistas, fascinados pela variedade que essa disposição de músculos permitem, descrevem como “contemplação, temor, aguardo ou desconhecimento”. Ao olhar com cuidado, identificamos na base do monolito, a inscrição de algum tipo de mensagem,  claramente prévia a criação do sistema único de linguagem. Se descreve aqui o encontrado:

EXPECTANT IGNOTUM

Nossas bibliotecas avaliaram que se trata de uma linguagem primitiva, e que a mensagem visava passar a mensagem semelhante “para aqueles esperando o desconhecido”.  A equipe ficou genuinamente maravilhada, pois o texto indica uma profunda capacidade de abstração, pouco encontrada pelas civilizações neste quadrante. Inclusive, se propôs a ideia de que este material ainda pode possuir mais informações, que ainda demanda mais análise.


Fim do relatório.




quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Navio de Teseu

Quando me deparo comigo mesmo, frente ao espelho, não me reconheço. Quem se posiciona à minha frente? Alieno-me da imagem que se forma. Onde está quem saiu de casa há mais de uma década e quem é esse que agora assume meu registro geral?
Não que o repudio de todo, mas o que os anos fizeram? Teria orgulho de mim aquele neófito de outros tempos, ou sentiria desprezo? Eu me descasquei de meus dogmas e virei quem deveria ser tal como uma fruta é para sua semente ou acumulei limo de fora como uma pedra no fundo de um rio? Eu virei o produto de um meio do qual desprezava ou ou meio permitiu quem eu fosse quem eu queria ser?
Eu sou a soma das minhas experiências ou o aglomerado de minhas concessões?
Na soma das interrogações sigo sendo apenas um agente observador de mim mesmo, sem saber se mudo o meio ou fui mudado por ele. 

sábado, 23 de outubro de 2021

Pale blue dot

 Me sento na frente do computador. Lá fora chove, e o barulho da água que meneia calhas e canos me lembra da indiferença das intempéries frente a tudo. Não importa a tristeza ou a solidão que sinto, a água não pede licença, se derrama, se verte e se vai. 

Na minha tela, me sinto menos ínfimo, mas a chuva lembra que quando olho pra cima, os entroncamentos de concreto, que rasgam céus e ferem a terra, me retornam a minha pequenez. A chuva me lembra também que são muitas gotas que caem para que se forme uma bátega, e eu sou só eu.

Lá fora, na maior cidade do hemisfério sul, alguém está sorrindo, enquanto alguém chora. Alguma criança está em sua concepção, enquanto alguém morre. Alguém está tendo a melhor noite da sua vida, enquanto alguém amarga a pior experiência que se pode ter. Todos dançam, mesmo sem dançar, enquanto seu chão gira, num inifito espaço, ermo em torno de uma bola de fogo, longe de qualquer significado além daquele que se quer ter.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Mapas de Lugares Inexistentes

 Não há personagem principal aqui. Esqueça a métrica e a classificação. Esta é a prosopopéia do não-contar.

Inexisto de forma inescusável. A duração de um acorde em Si bemol perante a idade do universo. Um fóton para uma galáxia. Proporções que não se encaixam em sistemas que não se conversam. Pouco, cadente e mesmo assim, cadenciado. Um evento que não se raciocina o por quê de existir .

Um único garfo em uma casa de cinco pessoas. Uma peça de xadrez num jogo de damas. Peça de roupa numa ilha deserta. Desconexo do que se há, pura entropia e caos. Éter, fulgor e chamas num universo gelado.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Mourn Song

 You can drown in the blood of the wars you've caused. I dont give a fuck anymore. I gave you my best, more than my dreams, I gave you my reality. My dreams, my plans, my deepest secrets were yours to take. But it wasn't enough. You've wanted my sanity, my will to move on. Living in your twisted fantasies just for fun while you live in your common life away from what you have created.

My biggest mistake was to offer you my very truth, while all you've wanted was a beatiful lie.


https://app.suno.ai/song/b6905c81-477b-4c1c-9e6e-8568fa34bc7e

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Encerramento

 Lentamente, ele subia os suaves degraus do último andar. O quincalhar de seus ossos eram ouvidos no ecoar da madeira e sua ofegante respiração era a única lufada de ar fresco que aquele lugar via a anos.

Abriu a porta que fazia um incomodo rangido, que ele havia prometido lubrificar a décadas. Os dedos já calejados e tremidos não tinham velocidade para acelerar o barulho, mas ele já não tinha pressa. Arrastou os pés até o fundo da sala, ergueu as caixas de papelão, que revelaram o baú, com um corino marrom, já desbotado do sol e do tempo.

Abriu, e já com a sensação da expectativa, abriu um largo sorriso, como se estivesse abrindo o mais rico tesouro. Dentro, alguns papeis amarelados, manchados do tempo. Cartas, bilhetes e notas. Ele remexia, levantava o mais rápido que podia até achar o que procurava.

Achou. No fundo, bem lá no fundo, estava uma imagem desbotada, quase totalmente apagada, impressa em papel-cartão. Pouco se via, além da silhueta de um jovem rapaz e de uma moça. Ele, de calção e chinelos, cabelos fartos e ela, de maiô petit pois, segurando um grande chapéu. Apesar dos poucos detalhes, via-se areia e um costão de pedras no fundo, além claro, da peça central: Um largo e espaçado sorriso na boca dos dois, daqueles que não se posa por ser espontâneo demais.

Olhava trêmulo para a imagem, mais trêmulo que suas próprias mãos. Seu olhar era perolado, e sem muito controle, começava a marear. O sorriso, agora sem tantos dentes, imitava aquele da foto, de forma quase caricata. Se ajeitou entre a bagunça, e no seu ritmo, sentou-se com os joelhos flexionados. Esticou os braços e colocou a imagem contra a luz. Sorriu mais uma vez, e levou a foto contra o peito. Fechou os olhos profundamente, como se quisesse voltar para aquele momento. Suspirou, sorriu e sentiu paz.





-Vô? Vovô? O que você tá fazendo aqui? - Disse o menino - Vô, que que é isso?

O menino tentou olhar entre o peito do avô o que ele segurava

-Vô quê isso? Não tem nada aqui...


Ele já havia levado consigo.