sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Paternidade.

 Se eu pudesse escolher uma só palavra para meu epitáfio, escolheria "pai".

A paternidade te transforma com ternura. De forma benevolente, te enxerta com um amor difícil de mensurar e impossível de explicar. Problemas antes insolúveis, viram etapas para um sucesso breve, antes do próximo desafio. Coloca em questão suas certezas e suas definições em xeque. Você precisa evoluir, precisa se resolver dos seus próprios traumas, e com uma ótica nova que alivia tudo, a certeza que o maior sucesso é o sorriso do teu filho.

Camila me ajudou a ser melhor, me desafiou a ser melhor, me instigou a ser melhor. Entender e aceitar a neurodivergência dela me ajudou a entender e aceitar a minha. Me obrigou a desacelerar no que eu queria e a acelerar no que eu precisava fazer. Fiz coisas que meu orgulho me disseram ser impossível e que meu medo me paralisava. Eu sou porque preciso ser.

Também sou filho. Filho do seu Sérgio, do Márcio Cruz. E com a ótica de pai, me coloquei a prova para entender o que sou para ele e o que ele é pra mim. Dos desafios que ele viveu para que eu chegasse onde cheguei, para entender as dificuldades, os erros e os acertos da caminhada. E finalmente me vi compreendendo que pais são apenas filhos com filhos, cheios dos seus traumas e erros e tentando fazer uma versão melhor de si.

Se eu pudesse escolher uma só palavra para meu epitáfio, escolheria "pai". Não porque é a única coisa que sou, mas a única coisa que me orgulho totalmente em ser. Não porque eu me reduzo a isso, mas porque isso me expandiu além de mim.

segunda-feira, 31 de julho de 2023

O Bibliotecário e o arquivista.

 Dentro de minh'alma existe um arquivista. Seu trabalho é de um esmero sem fim. Tudo que preciso esquecer, ele o faz com maestria. Das dores do passado, dos traumas que vivi e do que quero esquecer, nada foge do sentenciar de sua função. E como todo bom arquivista, nada está perdido, apenas catalogado e empratilheirado numa estante sem fim. O problema é quando esses arquivos voltam a tona, saltam de suas caixas e se espalham pelo chão. O arquivista não se compromete com o encerramento do que ali está, não é sua função. 

Dentro de minh'alma também vive um ávido leitor de vidas. Um bibliotecário, por se dizer. Sedento e ferrenho pra conhecer mais de mim, ele lê tudo o que passa em sua frente. Como uma traça de livros, devora, deglute e refestela no que leu. Nunca saciado, nunca satisfeito. Busca saber onde estou em cada pedaço da história de outras vidas. O bibliotecário sempre se frusta por saber sempre muito dos outros, e pouco do que ele quer encontrar. Percebe que eu, invariavelmente, sou apenas um coadjuvante breve em todos os livros que lê. Passageiro, efêmero. Venho e vou por onde passei. Alguns livros, um capítulo inteiro, outros, uma nota de rodapé. Nada que complete o panorama geral.

O arquivista e o bibliotecário não se entendem. Um tenta arquivar e encerrar a leitura, e o outro quer escancarar o que foi vivido. Um odeia o caos do que surge e o racionaliza, e outro goza das loucuras do escritor. O único livro em que sou personagem principal é o meu, mas este está em centenas, milhares de caixas, catalogadas e cerradas nos recônditos de minh'alma.

sábado, 8 de abril de 2023

Trinta.

Outubro de 1992. Quase 31 anos atrás.  Um pouco mais de doze anos atrás, escrevi aqui um texto, de um menino deslumbrado e preocupado com o mundo. Em outra idade emblemática, me volto para ruminar um pouco do que vivi, aprendi, desaprendi e conheci nessa vida.

A primeira coisa que aprendi é que a vida se importa muito pouco com os seus planos. Existem pessoas que traçam a vida inteira, e conseguem seguir passo a passo. Eu os invejo. Como um barco em tempestade, fui jogado para lugares que nunca imaginei ir sozinho. O garoto que tinha todas as certezas de onde estava saíndo e para onde estava indo não seria capaz de reconhecer este que o substitui. 

Me degladio para escrever esse texto. As memórias que um dia considerei primárias, já não são mais que borrões. Fundamentos e crenças já mudaram tanto que talvez eu devesse fundar o meu próprio secto religioso. Meu altruísmo e positividade pegaram um quê de cinismo e cretinice que se firma como uma pátina pela corrosão da vida real. E isso é tão ruim quanto é bom. Nenhum idealista vive muito tempo no mundo real.

Falando em mundo real, uma das conclusões mais frias que percebi é quão mundana é a minha vida. Provavelmente, se eu morresse hoje, haveria um ou dois dias de luto por um grupo seleto de amigos, e um pesar passageiro na vida de outras. A morte, assunto tabu em outros tempos, fica cada vez mais comum e menos chocante quanto mais o tempo passa. Não serei lembrado pela eternidade, como eu jurava que seria (e talvez, o que me motivou por muito tempo a crescer), e nem serei celebrado por alguém que não tenha me conhecido em vida. E tudo bem, assim foi com 99,9% de todos que aqui estavam. Deve haver algum dispositivo genético que te acalma ao longo do tempo sobre esta questão.

Mas, se for pra falar de algo mais mágico, a paternidade é a única coisa que genuínamente me dá forças pra brigar com esse status quo. Deus, em sua eterna sabedoria, me deu uma filha que me ensina todos os dias. É indissociável falar de mim e não falar do impacto que Camila tem em mim. O autismo dela me dá medo, confesso. Não consigo prever o futuro dela e o único medo que tenho de partir é deixá-la desamparada. É dificil até escrever este curto parágrafo sem ir às lágrimas. 

Interessante pensar nisso e na ciclicidade das coisas. Cada vez mais, me vejo mais parecido com os meus pais, e com o firme pensamento que nossas definições de inovações são patéticas. Homo Sapiens são animais que vivem seu ciclo de vida social quase que de forma idêntica desde sempre. Por mais que os séculos passem, filhos brigam com pais e acabam sendo seu reflexo, em aparência e costume. Me pego sempre imersos em pensamentos filosóficos de butiquim, que por mais geniais que me pareçam no momento, devem ter sido pensados infindas vezes por outros sábios anônimos ao longo das gerações, e mesmo assim, sou incapaz de colocar tudo isso no papel (ou no computador), pois me fogem quando tento racionalizá-los.

Felizmente, este blog ainda é feito para celebrar a minha abjetância. E talvez, em dez ou doze anos eu venha aqui dizer que tudo mudou, caso ainda o mundo esteja de pé. O fato é que hoje, sou mais eu e menos individual que já fui.