sexta-feira, 22 de março de 2024

sexta-feira, 8 de março de 2024

Revoada

Nas primeiras brumas do ano, ela vem voando para minha janela. Aquela andorinha, tão delicada, de plumas tão elegantes se espreguiça e canta em minha soleira. E eu, bobo que sou, só consigo admirá-la. Como um badulaque de uma rainha ou como os louros de um imperador, ela rouba a minha atenção por inteiro.
"Como foi sua migração desse ano, pequeno pássaro?" pergunto eu, ávido para que ela cante para mim. E ela gorjeia, me conta as coisas que vê no velho continente. Conta que os franceses, quando a veem exultam: "j'adore, j'adore petit oiseau!" , que se engalhofa na cidade das sete colinas e que lá gosta de se aninhar, mas que entende quando Gonçalves Dias dizia que as palmeiras daqui são melhores.
As vezes me frustro quando a andorinha se vai, porque todo ano quando ela peregrina, um pedacinho de mim também vai, e as vezes acho que essa parte de mim morre. Sinto que minha vida é um pouco menos feliz sem ela, que o sol brilha um pouco menos e os dias são mais morosos. Quando ela volta, não vem sem os permeios de suas próprias aventuras. Chega um pouco machucada, um pouco ferida, e tudo que eu gostaria de fazer é cuidar dela. As vezes ela sequer nem quer pousar por aqui, sente que já se aproveitou demais do meu poleiro. Estúpido, deixo meu orgulho falar mais alto, digo a mim mesmo que o pedaço do meu coração que ela leva é grande demais pra se deixar ir.
Ah, mas como me faz falta a andorinha de pernas longas! Como eu conto os dias do calendário, esperando a próxima migração para ouvir a sua cantoria, ver seus lindos penachos. E eu sei, e como sei, que eu nunca teria a coragem ou os meios para engaiolar o mais lindo passarinho que já vi, e com todo prazer, deixo que ela leve uma parte de mim, afinal, esse pedaço sempre foi e sempre será dela.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Paternidade.

 Se eu pudesse escolher uma só palavra para meu epitáfio, escolheria "pai".

A paternidade te transforma com ternura. De forma benevolente, te enxerta com um amor difícil de mensurar e impossível de explicar. Problemas antes insolúveis, viram etapas para um sucesso breve, antes do próximo desafio. Coloca em questão suas certezas e suas definições em xeque. Você precisa evoluir, precisa se resolver dos seus próprios traumas, e com uma ótica nova que alivia tudo, a certeza que o maior sucesso é o sorriso do teu filho.

Camila me ajudou a ser melhor, me desafiou a ser melhor, me instigou a ser melhor. Entender e aceitar a neurodivergência dela me ajudou a entender e aceitar a minha. Me obrigou a desacelerar no que eu queria e a acelerar no que eu precisava fazer. Fiz coisas que meu orgulho me disseram ser impossível e que meu medo me paralisava. Eu sou porque preciso ser.

Também sou filho. Filho do seu Sérgio, do Márcio Cruz. E com a ótica de pai, me coloquei a prova para entender o que sou para ele e o que ele é pra mim. Dos desafios que ele viveu para que eu chegasse onde cheguei, para entender as dificuldades, os erros e os acertos da caminhada. E finalmente me vi compreendendo que pais são apenas filhos com filhos, cheios dos seus traumas e erros e tentando fazer uma versão melhor de si.

Se eu pudesse escolher uma só palavra para meu epitáfio, escolheria "pai". Não porque é a única coisa que sou, mas a única coisa que me orgulho totalmente em ser. Não porque eu me reduzo a isso, mas porque isso me expandiu além de mim.

segunda-feira, 31 de julho de 2023

O Bibliotecário e o arquivista.

 Dentro de minh'alma existe um arquivista. Seu trabalho é de um esmero sem fim. Tudo que preciso esquecer, ele o faz com maestria. Das dores do passado, dos traumas que vivi e do que quero esquecer, nada foge do sentenciar de sua função. E como todo bom arquivista, nada está perdido, apenas catalogado e empratilheirado numa estante sem fim. O problema é quando esses arquivos voltam a tona, saltam de suas caixas e se espalham pelo chão. O arquivista não se compromete com o encerramento do que ali está, não é sua função. 

Dentro de minh'alma também vive um ávido leitor de vidas. Um bibliotecário, por se dizer. Sedento e ferrenho pra conhecer mais de mim, ele lê tudo o que passa em sua frente. Como uma traça de livros, devora, deglute e refestela no que leu. Nunca saciado, nunca satisfeito. Busca saber onde estou em cada pedaço da história de outras vidas. O bibliotecário sempre se frusta por saber sempre muito dos outros, e pouco do que ele quer encontrar. Percebe que eu, invariavelmente, sou apenas um coadjuvante breve em todos os livros que lê. Passageiro, efêmero. Venho e vou por onde passei. Alguns livros, um capítulo inteiro, outros, uma nota de rodapé. Nada que complete o panorama geral.

O arquivista e o bibliotecário não se entendem. Um tenta arquivar e encerrar a leitura, e o outro quer escancarar o que foi vivido. Um odeia o caos do que surge e o racionaliza, e outro goza das loucuras do escritor. O único livro em que sou personagem principal é o meu, mas este está em centenas, milhares de caixas, catalogadas e cerradas nos recônditos de minh'alma.

sábado, 8 de abril de 2023

Trinta.

Outubro de 1992. Quase 31 anos atrás.  Um pouco mais de doze anos atrás, escrevi aqui um texto, de um menino deslumbrado e preocupado com o mundo. Em outra idade emblemática, me volto para ruminar um pouco do que vivi, aprendi, desaprendi e conheci nessa vida.

A primeira coisa que aprendi é que a vida se importa muito pouco com os seus planos. Existem pessoas que traçam a vida inteira, e conseguem seguir passo a passo. Eu os invejo. Como um barco em tempestade, fui jogado para lugares que nunca imaginei ir sozinho. O garoto que tinha todas as certezas de onde estava saíndo e para onde estava indo não seria capaz de reconhecer este que o substitui. 

Me degladio para escrever esse texto. As memórias que um dia considerei primárias, já não são mais que borrões. Fundamentos e crenças já mudaram tanto que talvez eu devesse fundar o meu próprio secto religioso. Meu altruísmo e positividade pegaram um quê de cinismo e cretinice que se firma como uma pátina pela corrosão da vida real. E isso é tão ruim quanto é bom. Nenhum idealista vive muito tempo no mundo real.

Falando em mundo real, uma das conclusões mais frias que percebi é quão mundana é a minha vida. Provavelmente, se eu morresse hoje, haveria um ou dois dias de luto por um grupo seleto de amigos, e um pesar passageiro na vida de outras. A morte, assunto tabu em outros tempos, fica cada vez mais comum e menos chocante quanto mais o tempo passa. Não serei lembrado pela eternidade, como eu jurava que seria (e talvez, o que me motivou por muito tempo a crescer), e nem serei celebrado por alguém que não tenha me conhecido em vida. E tudo bem, assim foi com 99,9% de todos que aqui estavam. Deve haver algum dispositivo genético que te acalma ao longo do tempo sobre esta questão.

Mas, se for pra falar de algo mais mágico, a paternidade é a única coisa que genuínamente me dá forças pra brigar com esse status quo. Deus, em sua eterna sabedoria, me deu uma filha que me ensina todos os dias. É indissociável falar de mim e não falar do impacto que Camila tem em mim. O autismo dela me dá medo, confesso. Não consigo prever o futuro dela e o único medo que tenho de partir é deixá-la desamparada. É dificil até escrever este curto parágrafo sem ir às lágrimas. 

Interessante pensar nisso e na ciclicidade das coisas. Cada vez mais, me vejo mais parecido com os meus pais, e com o firme pensamento que nossas definições de inovações são patéticas. Homo Sapiens são animais que vivem seu ciclo de vida social quase que de forma idêntica desde sempre. Por mais que os séculos passem, filhos brigam com pais e acabam sendo seu reflexo, em aparência e costume. Me pego sempre imersos em pensamentos filosóficos de butiquim, que por mais geniais que me pareçam no momento, devem ter sido pensados infindas vezes por outros sábios anônimos ao longo das gerações, e mesmo assim, sou incapaz de colocar tudo isso no papel (ou no computador), pois me fogem quando tento racionalizá-los.

Felizmente, este blog ainda é feito para celebrar a minha abjetância. E talvez, em dez ou doze anos eu venha aqui dizer que tudo mudou, caso ainda o mundo esteja de pé. O fato é que hoje, sou mais eu e menos individual que já fui.

domingo, 19 de junho de 2022

Capitulo 1: um assassinato em seropedica

 O voyage branco com detalhes pretos encostou no local próximo as 19:00. O Calor de dezembro estava mais forte que o normal e não devia fazer menos do que 30 graus. Cláudio deu a última puxada no cigarro, ajeitou o distintivo no peito e a pistola no coldre abaixo do braço. Abriu a porta com a sigla DECPA e jogou a bituca pra fora e seguiu para o bar. 

-Inspetor Claudio? - dizia o policial militar, com cara de assustado - eu não sei como explicar isso, mas tem um cara com pernas ao contrário lá dentro morto com as tripas pra fora. A gente ia averiguar, mas mandaram a gente ligar pra sua delegacia - dizia o rapaz com medo de ser taxado de insano

- Fica tranquilo, volta pro batalhão e não precisa preencher nada, o pereira vai tá te esperando pra te auxiliar ai no que você viu. - dizia ele com um ar de naturalidade e ao mesmo tempo de enfado

Pigarreou, cuspiu no chão e entrou no bar. Estava no final de Seropédica e ali qualquer coisa acima de cadeiras de plástico e cerveja barata era artigo de luxo. Tudo estava revirado como se um ciclone tivesse passado por ali. Uma trilha de sangue ia ao banheiro com a porta sanfonada entreaberta. 

O cheiro era forte, e com um lenço que usava para limpar a testa, tampou o nariz. A cena, que parecia de terror medieval, estava ali a quase um dia, no chute dele. As pernas invertidas encaixadas de forma perfeita no quadril como se assim fossem naturalmente e o cabelo de fogo eram o menos estranhos, quando comparados com o sangue, as entranhas e o rosto completamente assustado, travado em um rigor mortis.

-Tempo que não via um curupira, ainda mais morto desse jeito - Resmungou consigo mesmo - Cadê a porra do perito pra fazer o laudo? Dezembro não tem um que salva. 

Tirando a cena dantesca, não parecia ter nada ali que ele pudesse tirar de sobrenatural. A morte claramente foi a muitas horas e tinham poucas pessoas na região. Foi pra fora pegar algum sinal e ligar de novo para o perito.

Ao sair, procurava o número no bolso, imerso na raiva de trabalhar naquela semana, mal percebeu o vulto que o olhava fixamente

-Não imaginava que a Crimes Paranormais ia mandar uma viatura a esse fim de mundo - Dizia a voz do outro lado da rua

Imediatamente sacou sua pistola e olhou em direção ao barranco de onde vinha a voz. Um homem negro, de terno branco, chapéu vermelho, claramente segurando uma bengala enquanto se escorava no banco de madeira improvisado. 

-Sandro. Sabia que você ia estar por aqui. Bora, você tem que prestar algumas explicações lá na DP. - Disse Cláudio, apontando firmemente em direção ao homem que não parecia nada intimidado. 

-Mais respeito, inspetor, me chame de Sr. Cinábrio. Vocês sabem que estão violando o acordo, não é? Esse território é da associação e nós resolvemos nossos próprios problemas. Não que vocês fizessem muita coisa. - Dizia ele tirando um cachimbo do bolso do paletó

-Vai tomar no cu, porra - Disse ele com o dedo no gatilho - Uma morte dessas quebra totalmente o pacto, e você tem sorte de eu não descer aqui com a porra toda e trazer tudo abaixo, agora levanta esse rabo e vem pra ca antes que eu te encha de bala

- Ah, Inspetor Claudio, você não faz ideia do que ta acontecendo não é? - Disse ele acendendo e pitando o cachimbo. - As coisas vão mudar radicalmente, e não vai ter pacto que salve nossa relação 

A luz dos faróis da viatura chegando cegou o inspetor, e ao gritar para abaixar, sentiu um vento no rosto, virou-se e o homem não estava mais ali. Esbravejou e foi em direção ao carro

- O que foi? Soube agora no rádio do caso - Disse o homem de bigodes brancos saindo do carro puxando uma maleta. - O silveira já está chegando, ficou pra trás no sinal, descobriu alguma coisa?

- Saci, doutor escarabel. Essa porra foi um saci, e isso vai dar merda - Disse ele guardando a pistola - Resolvam isso, eu vou voltar pra delegacia, preciso conversar com o delegado. 

sexta-feira, 18 de março de 2022

Gueixa

 Tirei os sapatos, entrei e me ajoelhei. Ela estava vestindo a seda mais pura, com olhos serenos e sorriso dissimulado. Seu rosto branco e sorriso vermelho ornava com aqueles desenhos de plantas exóticas. Sentou ao meu lado e com delicadeza me pegou pelo braço, para que eu sentisse seu calor. Me serviu saquê e pediu que eu falasse da minha vida. Não parecia real, mas sentia vontade de contar cada pedaço pra ela. Troquei segredos enquanto ela me acariciava, e mesmo que ela não falasse muito, eu sentia como estivesse dentro do peito dela. Era confortado pela sua doce presença

Mesmo sendo falso, eu fazia o máximo para me enganar. As poucas palavras que ela me dizia pareciam serem feitas para mim, como se ela estivesse esperando para sempre aquele momento. No meio do meu estado ébrio, senti que havia finalmente redescoberto o amor. Sua mão macia me pegou e levou-me para o quarto. Enquanto ela se despia, sentia algo que a muito não sabia descrever. Seu corpo em mim parecia feito um encaixe de fechadura. Nossas mãos deslizavam-se ao encontro no meio do caminho. Sussurros diziam todas as verdades que queríamos dizer, no meio das mentiras construídas por aquele momento. E seus olhos, ah os seus olhos, olhavam tão fundo nos meus que me desbravaram sem o mínimo pudor. Estava rendido, entregue, prostrado. Eu era dela e de mais ninguém, e se de alguém ela foi, isso não importava, era comigo que ela estava. Sentia a mais profunda plenitude, e aqueles minutos viram dias, semanas, anos, éons.

Eu me levantei, e com o coração pesado, parti, sabendo que ela também iria. Quando retornei a minha cama, sentia um vazio imenso, que só ela seria capaz de preencher. Procurava seu corpo em cada canto, em cada esquina. Como a abstinência do ópio, sua falta me fazia querer arrancar minha pele. Eu não era capaz de viver sem que ela estivesse ali comigo. Precisava de tê-la comigo.

A procurei, e quando a achei, era melhor que não a tivesse encontrado. Seus olhos já não eram mais as infinitas piscinas que olhei um dia, e sim vitrais opacos e destituídos da luz que outrora vi. Seu sorriso agora estava cimentado em músculos herculeanos. Não que eles não existissem, só não eram mais para mim. Eu clamava pela sua voz, mas ela me negava, eu pedia seu toque, mas ela não aceitava.

Eu me ajoelhei para chuva e gritei aos céus, e tudo que ouvia era o silêncio.