sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Rapto de Psiqué

Não gosto de sentir. Sentir dói. 
Sentir não se conecta a ciência, ao pragmatismo que estou tão acostumado, protocolos, padrões.  Não, sentir é um castigo de Prometheu. É o suplício motor das desgraças que a história foi construída.
Existem as regras, as leis, a lógica.  O sentimento é a subversão disso. Um homem sensato bebe cicuta pela verdade. Um sentimental lava o sangue invisível das mãos.  Sentir oprime. Turva. Dura lex sed lex, sentire non est lex.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Ritual

Ela desperta a magia. Mas não a wiccana, não o neo-paganismo. Não há dentro de si os guias arcanos europeus, cheios de encantamentos e regras, os grimórios, as leis. Não, não existe regras em sua magia...
Ela desperta o primordial. Seus quadris evocam a magia antiga. O transe, a loucura, frenesi. Sua voz é o barulho do calcar de pés descalços em volta da fogueira, ritmados nas batidas instrumentais da carne. Ela é o batucar das peles curtidas yourubá. A canção do inteligível. O que a humanidade expressava antes mesmo de saber expressar. Ela é a conexão carnal entre o céu e a terra. O profano espiritual, o que há de físico no etéreo.
Ela é Oya. Eu sou Exu.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Wisakedjak

O Corvo olha por cima de sua cabeça. Abre sua negra dorsal contra o Sol, num ato de imponência, eriçando cada betuminosa pena. Na sua arrogância, se emposta perante o astro-rei, o desafiando a uma batalha campal. É ignorado. Grita. Silêncio.
Arremete voo e parte em prol de sua próxima empreitada. Sua forma desenha o preto no azul. Sombra. Luz. Trevas. No chão, é apenas um ponto. No céu é o Eclipse, é o fim de tudo. É o ícaro com nuances de Ragnarok. Mesmo que não dure muito. Seu inimigo o aguarda na próxima hora alta. Sua luta quixotesca não tem fim.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Histórias do Coriço II: Acrilic on Canvas

Esgarça o pincel, aperta a tinta, lampeja a parede com riscos quasi-infantis. DaVinci lhe ensina os passos para pintar sua incomparável musa, Caravaggio lhe ajuda no chiaroscuro de sua difícil mensagem e Michelangelo guia sua mão para a conclusão de seu magnum opus
Aperta os olhos, se afasta. Se aproxima, entre os tiques e as risadas. Olha de perto. Gargalha entre os soluços e lágrimas. Não está bom. Não ainda, não. Não é isso. Ri, contorce de dor. 
Lhe falta os momentos do casamento, dos filhos, da alegria esfuziante. Onde está o seu último achado de semana passada? Revira sua bagunça. Entre os lençóis floridos e pedaços de uma madeira envernizada, acha a caixinha preta, sem muitos detalhes, mas com cheiro de perfume barato. Aplaude, dança uma ciranda em volta de uma fogueira imaginária. Com o braço joga o que está em cima da conturbada mesa, quebrando vidros e estalando metais. Trêmulo, abre seu tesouro: entre mechas de cabelos longos, puxa um pequeno batom. Fixa seu olhar, grita. Roda com cuidado, expõe o carmesim, da mesma cor do sangue sob os seus pés. 
Risca de ponta a ponta. Dois pontos de fuga. É isso. Está pronto. Urra, vocifera, abraça a barriga vazia, está satisfeito do vazio que lhe fez, pronto para ser inundado do amor. 
O velho telefone toca na hora de seu êxtase. Se recompõe, volta a banalidade, puxa o gancho, põe no ouvido. São novamente Eles. Dizem que dessa vez  passou dos limites, estão indo busca-lo com aquele papel que lhe tira do seu amor. Ele abre o maior sorriso, aperta os olhos. Pronuncia em profundo prazer e agonia:

"Sinto muito, eu não moro mais aqui."

Gargalha, se deita. Se encolhe. Dorme. Volta para os braços dela.