domingo, 6 de dezembro de 2020

Ansiolitico

Não é bem silêncio, é ruído sem sentido. Imagens de plano de fundo, uma TV com estática. Tem imagens, trabalho, mas não há nada de relevante. É só standby. Espere o próximo estímulo. 
Só música de elevador, revista Caras na sala de espera. É só o estímulo básico para que sua mente não decole. 
Um homem senta e olha a rua. Não há nada para se ver, mas fita com intensidade, esperando algo que não seja carros e transeuntes. 
São janelas acesas do décimo andar de um prédio num bairro qualquer, estrelas piscando a incontáveis anos-luz daqui. Paredes com grafittis escorridos e mofo, papeis-posteres meio rasgados de um show do mês passado. 
É só existir até que se não exista mais. 

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Andante

Recebi uma visita mágica esses dias. Uma Bruxa que vinha pelos ventos do Sul, cavalgando asas de metal sobre uma lufada dos ventos austrais. 
De bruxa, apenas o nome e função. Não tinha nariz aquilino, nem rugas, muito menos unhas compridas ou risada maléfica. Seus seios fartos e coxas voluptuosas marcavam o transparente vestido. Seu rosto, era dócil e invocava carinho, ao mesmo tempo que gerava respeito. Nos braços, arcanos indecifráveis para mim, de tempos imemoriais e sabedoria pagã. Sua presença me constrangia, pois sentia que naquele pequeno tamanho, haveriam coisas de me prender e me ensinar. 
Tomando minha, mão, me mostrou o Cosmos. Feito da poeira dos planetas, vi do fim ao começo. Do caos a ordem, todas as coisas apareceram. Átomos surgiam, colidiam, criavam e cessavam. Éramos nada, tão pouco em tão pouco tempo. Vislumbrei as peças do éter que compõem a sinfonia universal, um canto que ainda não havia decifrado e nem sequer ouvido. Mozart e Bach pareciam cantigas próximo ao que vi.
"Esta é a minha mensagem", sussurrou em meu ouvido. "Somos apenas ouvintes do que se passa, meros espectadores desta grande ópera. Minhas linhas de Ley só emanam da força impetuosa do eterno passar. Pó, eu e você, num aguardo do fim e do re-existir. Não existe nada, e tudo existe. Por que temes? Aproveita o que podes, teu sentimento é a tua causa e o teu fim. Crowley disse apenas o óbvio. Somos tudo pois estamos intrinsecamente ligados, e apenas uma semi-coma da canção."
Não era o que acreditava, pois não era o que via. O caos em minha cabeça era apenas o homem sem a capacidade de entender o tempo da música. Ela ria, enquanto valsava ao som do vácuo. "Não temas, sou tua e tu és meu, mesmo que nunca seja tua e tu nunca serás meu. Não vês? é apenas o caminho do que há, caminhando para o que há de ser."
Do jeito que veio, voltou. Me deixou pensando na natureza ínfima do meu ser, enquanto pensava eu ser eterno.
    

domingo, 1 de novembro de 2020

Contos do cortiço III: O mundo é um moinho

 Já alvorecia. Entre os tropeçares e as dores, ela abriu a rangente porta e descalçou o salto alto. Na pequena geladeira, já amarelada a tantos anos, abriu o freezer e pegou um saco de mercado, estrategicamente deixado com pedras de gelo para esse tipo de situação. Ainda olhou, mas fazia companhia a bolsa térmica improvisada apenas uma garrafa plástica amassada e dois ovos. Suspirou, se jogou na cadeira e se espanou, levando a bolsa a testa.

Já não era mais tão fácil aguentar socos e tapas da vida noturna. Tinha tanta certeza que aquela vida iria mudar em no máximo, um ou dois anos. Não era incomum ouvir das amigas que todo rico quer uma mulher boa de cama, e que quando se cansam das dondocas retocadas e esticadas, escolhem uma dama da noite, de quadris largos e movimentos rápidos. Não poderia ser diferente com ela. Mas dez anos já se passaram, e antes os largos maços de notas que ganhava toda noite com sua juventude, agora davam sorte se eram o suficiente para pagar as contas daquele buraco que acabou indo.

Suspirou novamente, desta vez passou perto demais de morrer. Se não fosse por Geni, sua vizinha, talvez não tivesse escapado da facada daquele bêbado. Estava cansada, cansada demais. Mais um que jurou amores e a tentou matar. O abismo que cavou com os próprios pés era fundo demais pra sair. 

Olhou pra mesa velha de canto. A foto, agora esvaecida, mostrava um senhor magro, negro, de óculos escuros, cabelo impecável e um lindo sorriso aberto. Ainda jovem, ela inclinava o rosto nos ombros do senhor e rodeava o seu braço ao pescoço. Era tão feliz, tão singelo. Um momento eterno em sua memória. "Foi a última vez que o vi sorrindo", recordou. Logo após, contou que ia tentar a vida em outra cidade, com suas amigas. Ele sabia quais eram as amigas, e seu rosto recrudesceu instantaneamente. Não berrou, não a agrediu, mas fez algo pior. Ele tirou os grossos óculos, e lhe disse: O mundo é um moinho.


E realmente era. O mundo é um moinho, e esse moinho havia lhe triturado por inteira.

Grego

 Um dos onírios me visitou esta noite. Morpheu já não se faz presente a muito tempo e phobetor já não me assusta mais. Era phantaso. Com ele, trouxe toda a sorte de desejos. Fulgor, luxúria, insensatez, misturados numa  chama.

Entre os tilintares e os sibilos da dança quente das chamas, sombras se formavam na parede. Seios, curvas, abdomens. Dionísio estava entre nós, numa profana festa carnal, fazendo tudo virar paixão. Não havia ninguém e ainda assim, todos estavam ali. Não havia música, tudo se resumia a canção primitiva das fricções carnais. O suor era o vinho, as coxas eram a carne. 

Se aquilo era não era divino, tampouco era humano. A mente não processava o que via. Uma cena metafísica, que transcende o compreender e o sentir. As horas passavam e o êxtase era infindável. Não havia início, nem fim. Éramos um, e éramos nada. O transe era grande demais para pensar...

E entre os cantos de um sabiá-laranjeira, acordei. Suado, sozinho e pensativo.