domingo, 6 de dezembro de 2020
Ansiolitico
segunda-feira, 2 de novembro de 2020
Andante
domingo, 1 de novembro de 2020
Contos do cortiço III: O mundo é um moinho
Já alvorecia. Entre os tropeçares e as dores, ela abriu a rangente porta e descalçou o salto alto. Na pequena geladeira, já amarelada a tantos anos, abriu o freezer e pegou um saco de mercado, estrategicamente deixado com pedras de gelo para esse tipo de situação. Ainda olhou, mas fazia companhia a bolsa térmica improvisada apenas uma garrafa plástica amassada e dois ovos. Suspirou, se jogou na cadeira e se espanou, levando a bolsa a testa.
Já não era mais tão fácil aguentar socos e tapas da vida noturna. Tinha tanta certeza que aquela vida iria mudar em no máximo, um ou dois anos. Não era incomum ouvir das amigas que todo rico quer uma mulher boa de cama, e que quando se cansam das dondocas retocadas e esticadas, escolhem uma dama da noite, de quadris largos e movimentos rápidos. Não poderia ser diferente com ela. Mas dez anos já se passaram, e antes os largos maços de notas que ganhava toda noite com sua juventude, agora davam sorte se eram o suficiente para pagar as contas daquele buraco que acabou indo.
Suspirou novamente, desta vez passou perto demais de morrer. Se não fosse por Geni, sua vizinha, talvez não tivesse escapado da facada daquele bêbado. Estava cansada, cansada demais. Mais um que jurou amores e a tentou matar. O abismo que cavou com os próprios pés era fundo demais pra sair.
Olhou pra mesa velha de canto. A foto, agora esvaecida, mostrava um senhor magro, negro, de óculos escuros, cabelo impecável e um lindo sorriso aberto. Ainda jovem, ela inclinava o rosto nos ombros do senhor e rodeava o seu braço ao pescoço. Era tão feliz, tão singelo. Um momento eterno em sua memória. "Foi a última vez que o vi sorrindo", recordou. Logo após, contou que ia tentar a vida em outra cidade, com suas amigas. Ele sabia quais eram as amigas, e seu rosto recrudesceu instantaneamente. Não berrou, não a agrediu, mas fez algo pior. Ele tirou os grossos óculos, e lhe disse: O mundo é um moinho.
E realmente era. O mundo é um moinho, e esse moinho havia lhe triturado por inteira.
Grego
Um dos onírios me visitou esta noite. Morpheu já não se faz presente a muito tempo e phobetor já não me assusta mais. Era phantaso. Com ele, trouxe toda a sorte de desejos. Fulgor, luxúria, insensatez, misturados numa chama.
Entre os tilintares e os sibilos da dança quente das chamas, sombras se formavam na parede. Seios, curvas, abdomens. Dionísio estava entre nós, numa profana festa carnal, fazendo tudo virar paixão. Não havia ninguém e ainda assim, todos estavam ali. Não havia música, tudo se resumia a canção primitiva das fricções carnais. O suor era o vinho, as coxas eram a carne.
Se aquilo era não era divino, tampouco era humano. A mente não processava o que via. Uma cena metafísica, que transcende o compreender e o sentir. As horas passavam e o êxtase era infindável. Não havia início, nem fim. Éramos um, e éramos nada. O transe era grande demais para pensar...
E entre os cantos de um sabiá-laranjeira, acordei. Suado, sozinho e pensativo.