sábado, 3 de maio de 2014

Histórias do Cortiço I: Ska

A noite já caiu no bairro. O vento, de alguma forma, conseguiu fazer as sinuosas curvas entre os emaranhados de becos, portas e janelas que o impedem de chegar ao pequeno cubículo mofado que abriga a mocinha loira munida de roupas encardidas e pés sujos.
O vento a assopra, mas ela continua ali, em eterna posição fetal. Seus olhos azuis enressacados olham fixamente para o restinho de sol que a abandona pela janela. Se ajeita mais uma vez entre a cama velha e o criado mudo, de onde a esfarelada  foto do casal risonho, agora quase disforme, implora para sair da pilha de calmantes e antidepressivos.
É nessa exata hora que seu olhar sempre se volta para a porta, sempre esperando o bárbaro executor de seu castigo karmático, o redentor de suas mazelas ou apenas qualquer um que se importasse. Mas eles nunca aparecem, nunca a completam, nunca a realizam. O filme de sua cabeça, nunca se completa. Maldita vida, que nunca segue seu scrpit  tão bem delineado pelas infindas horas escritas na em sua cabeça, infinitamente martelados, reformados, reescritos. Nunca está bom o suficiente, nunca plausível para acontecer, droga, nem concreto para ser tangível, como ele seria executado afinal?
Mesmo assim, isso não impede dos cacos serem reunidos e reformados, dia após dia. "Temos tempo, o final ainda pode ser rescrito, ainda me sobra um sonho. Ele não me domina, eu não permito, nunca permiti. Se afaste!".O choro pós-falha é visitante frequente, talvez, o único que ainda se importe com toda a essa ciranda. Afinal, é ele que lava o rosto da pobre desalmada, deixando as feridas do seu pobre coração asséptico novamente.
Ela fica de joelhos e agarra a velha imagem. Não, não pode ter sido ela, não foi ela a causadora disso tudo, ela foi apenas a passageira de uma história que nunca teve controle. A foto ali prova que ela nunca será a culpada. Olha só como ele está rindo olha como eles são felizes. Não pode ser, ela nunca pode ter sido a causa disso tudo, que falácia mal-feita. Pare de balbuciar isso.
Tão certo como o choro, agora vem as vozes acusadoras. Essas sim, são as donas desse quartinho cheirando a quentinha velha e álcool barato. O Acusador é o primeiro, com sua voz de trovão e seus argumentos tão bem estruturados, a destroem por completo. Depois, vem a auto-piedade, sempre achando um jeito de lhe confortar do jeito que pode, e por fim, a Raiva, sempre lhe instigando a tacar mais alguma coisa na parede. Raiva só lhe abandona quando a síndica acerta as vassouradas no chão velho, levantando sempre alguma poeira.
Dessa vez, as vozes foram mais convicentes, e incrivelmente mais sucintas. Lhe disseram apenas o que ela já sabia, sem que isso fosse de maneira alguma menos impactante. Ela dá um nó em seus cabelos loiros, e abre os potes: Um do vermelho, não, dois do vermelho e três do amarelo devem bastar. Melhor, três do vermelho e três do amarelo. As vozes irão abandoná-la assim.
Lentamente, as vozes vão esvaindo, e a imagem dele aparece na porta. Sim, ele veio! Ele veio perdoá-la, veio finalmente dizer que está tudo bem. Ele ergue as mãos, mas ela não consegue fazer o mesmo, suas mãos estão pesadas, assim como suas pernas. Ela grita, mas a saliva em sua boca vira espuma e a impede de falar qualquer coisa. Mas ele está ali! Ele vai salvar ela, mesmo que ela nunca tenha feito nada para ser salva. O debater no chão é apenas um detalhe, ele vai ignorar, ela tem certeza! Seus olhos fecham lentamente bem a tempo de ver ele se virando e indo embora. "Não se vá, por favor!" Ela grita dentro de si. Se ao menos, essa vassoura parasse de bater no chão abaixo deles, tudo ficaria melhor, ele não iria se incomodar tanto. Agora, é tarde, tudo está tão quieto, sem vozes, sem cheiro ruim, sem vento incômodo.

Que final romântico, morreu de amor.

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