terça-feira, 28 de outubro de 2025

Cristo

Foi nessa idade que as Cortes Celestiais designaram que Ele teria idade suficiente para realizar o sacrificio supremo e carregar a culpa quasi-infinita de toda a humanidade. Não há mais espaço para meninices.

Ai de mim que cheguei nessa idade e vivo em incontáveis casas decimais abaixo. Ainda temo, sofro, angustio e me sinto imaturo para tomar as decisões mais simples. Oxalá tivesse ao menos tanta certeza do futuro, que me permitisse celebrar o que já deslumbro.

Sempre esperei que uma alavanca mágica me mudasse de um dia pro outro. Que deixaria de gostar das minhas coisas bestas, dos erros púberes, das celebrações toscas. Infelizmente, ou quiçá, felizmente, percebi que tudo se atrela ao maldito movimento imparável em direção à propria cova. E que o pensamento machadista de que sua melhor versão se dá aos vermes é de uma veracidade invejável. 

Perceba, você, o tom de requiém destas palavras, mas que nela, não existe nenhuma supresa. Nestes tempos, apesar de ainda distante, o fim ja é muito mais tangível. Onde era motivo de piada, hoje é motivo de certeza. 

Certeza também, é estar preso na roda da vida. Um Samsara terreno. Repete-se e repetir-se-á os mesmos erros da geração anterior. Entender que você já não é mais uma massa disforme, e sim um oleiro que forma outros vasos, e com suas torpes mãos, vai errar também. E com a maldição da consciência, tentar corrigir o que é incorrigível. 

Ainda há muito para se viver, mas muito menos do que já se teve um dia. Sacrifica-se o cordeiro e vira-se o carneiro. 

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Ana

 Ás vezes me pego pensando na tia Ana. Foi a primeira vez que vi alguém falando que ia morrer de verdade. Eu tinha 10 anos.

Naquela época, morrer era inconcebível. Não que eu tivesse medo (ainda), eu só não conseguia entender o fato de alguém que não fosse muito velho, morrer. Era estranho, por mais que ainda houvesse um fio de esperança, a certeza dela em saber que ela havia perdido uma batalha.

Tia Ana não era muito querida, verdade seja dita. Uma vez, vi ela espancando minha prima por uma razão trivial. Ela chicoteava com um cinto as costas da filha, que arfava e babava de quatro no chão. Ninguém tinha coisas muito boas pra dizer dela. Ou ao menos, eu não me lembro. Sempre era algo de ser muito resmungona, ou que sofreu muito na vida por causa do meu avô esquizofrênico, que não aceitava ter tido uma filha mulher. Eu não acho que minha tia Ana escolheu construir essa imagem de si, pior ainda, não acho que essa era a imagem que ela queria deixar. Ela tinha um casamento com um maluco que fedia a cigarro e se achava muito bonito, mas que era um alcoolatra. Ele era estranho, mas minha tia morria de amores por ele, mesmo ele a abandonando volta e meia. Depois da morte dela, parecia que ele tinha literalmente derretido. Ficou gordo, banguela e careca. Morreu alguns anos depois, batendo a cabeça na quina da mesa de casa.

Eu não conheci a tia Ana, na verdade. Eu era um fedelho, e além de não ter relevância o suficiente para que alguem quisesse ser conhecido por mim, eu conheci apenas uma faceta da minha tia Ana, que já estava gasta e magoada pelo tempo. E assim, como eu também mostrei pequenas facetas ao mundo, ela deixou pouco demais pra mim. 

Eu tenho certeza que tia Ana era uma pessoa complexa. Ela amou, sentiu, sofreu, tentou dar o seu melhor, ou talvez não. Não tenho como saber. Ela teve duas filhas, assim como eu, e por mais que minhas memórias não sejam as melhores sobre ela, com certeza ela deve ser vista com outro tipo de verniz pela sua prole.

Acho que ninguém pensa muito na tia Ana. Seus ossos foram removidos da tumba da família, pra dar espaço pro seu pai, e depois, irônicamente, seu marido. Tirando suas filhas e talvez seus irmãos, foi uma pessoa que não deixou muitas saudades. Ninguém se debruça nas suas histórias, ou lembra rindo de suas situações cômicas. Talvez alguém tenha conhecido outra Ana, que era mais alegre e mais relevante, mas isso me escapa.

Eu as vezes me vejo na tia Ana. 

Vá em paz, tia Ana.